Cada vez mais RPGs estrangeiros derivados do seminal Apocalypse World têm chegado no mercado nacional e inspirado outros tantos jogos nacionais. Lá se vão mais de dez anos desde o lançamento do AW e na esteira vieram inúmeros e interessantes hacks e adaptações das regras, que deram origem ao nicho de jogos independentes Powered by the Apocalypse (PbtA). Estão para chegar aqui os títulos Masks, City of Mist, Glitter Hearts, The Sprawl, The Happiest Apocalypse on Earth, Action Movie World e outros — fora os que já estão entre entre nós. Eles têm um estilo narrativo ágil, furioso, com regras leves e diretas que fundem maravilhosamente jogo e metajogo, e as jogadas resumem-se a lançar apenas dois dados de seis faces (2d6) e somar um modificador. É isso, nada mais. Porém, muita gente ainda fica perdida então vou destacar os principais pontos.
O Jogo É Uma Conversa
Os jogos PbtA têm uma dinâmica distinta e incomum, e podem confundir um pouco de início. Há quem sinta a sensação de que ‘tá faltando algo’ nas descrições das mecânicas do sistema. Pudera, é um conjunto de regras bastante pautado no improviso, narrativa compartilhada e na criação colaborativa que se resume perfeitamente no mandamento “Jogue Para Ver o Que Acontece”. Desde as sementes do cenário de jogo até a decisão pelo melhor desfecho de uma cena, tudo é definido em acordo entre Mestre de Cerimônias (“MC” é o codinome de muitos PbtA para a figura de Mestre de Jogo) e o grupo de jogadores(as). E esse é o cerne de tudo: uma conversa horizontal e fluida em que cada participante contribui para construir a história, sem antagonismo:
É um conjunto de regras bastante pautado no improviso e na criação colaborativa que se resume perfeitamente no mandamento “Jogue Para Ver o Que Acontece”
A pessoa na figura de MC descreve a cena; um(a) ou mais jogadores(as) pedem mais detalhes e/ou decidem como sua personagem vai agir; essa ação específica “engatilha um movimento” e rolam-se os dados; o resultado do movimento resolve a cena ou abre novas frentes; MC descreve a nova cena. A bola fica quicando de um lado pro outro, entre MC e participantes, cada pessoa tem seu momento sob os holofotes para agir e inserir algo bacana na história construída em conjunto. Ainda meio doido, né? Sem problema, vou transcrever aqui a própria recomendação contida na introdução do Apocalypse World:
Não se preocupe se parecer confuso: as regras vão ajudar a mediar essa conversa, entrando em ação assim que alguém disser determinadas coisas, e vão impor limites ao que poderá ser dito na sequência. Vai fazer sentido, ok?
Você Aprende Jogando
Você já entendeu o principal. Após a descrição da cena você decide sua ação e a sua fala engatilha um Movimento.
Movimentos: o que são? Onde vivem? Do que se alimentam? Movimentos são as ações típicas de cada participante. Eles traduzem as Habilidades, Talentos, Disciplinas, Traços, Vantagens, Poderes, etc. presentes em qualquer RPG, descrevem o que cada personagem pode fazer. O grande pulo do gato são os gatilhos, a fagulha narrativa que põe as coisas em movimento numa cena. Os gatilhos de Movimentos, em geral, são descritos assim: “Quando você fizer isso com tal objetivo, então faça aquilo…”. É simples assim.
O mais interessante nos PbtA é que tudo o que você precisa ler pra começar a jogar são a folha de Movimentos Básicos e a ficha da sua própria personagem — às vezes chamada de Manual de Classe, Manual de Personagem ou Cartilha, varia de jogo pra jogo.
Existem os Movimentos Básicos e os Movimentos de Cartilha. Os Básicos são as ações comuns disponíveis para todas as personagens. Coisas típicas algo como Atacar, Investigar, Convencer, etc. Os de Cartilha são os movimentos específicos de cada personagem em um PbtA, por exemplo, Conjurar Magias em que apenas personagens com acesso a poderes místicos conseguem engatilhar esse tipo de Movimento. Pronto, é tudo o que você precisa saber pra jogar! Escolha uma Cartilha da personagem que mais te agrada naquele jogo, leia seus Movimentos para se familiarizar com seu arquétipo, e mantenha a folha de Movimentos Básicos à mão.
Existem também os Movimentos de MC, mas isso é papo para o próximo artigo. Em breve vou escrever apenas sobre a figura de Mestre de Cerimônias, seu papel, boas práticas e sugestões para narrar um PbtA.
Falhar É Legal, Falhar Empodera
É errando que se aprende...
Nos PbtA, um dos aspectos mais divertidos, interessantes e diferentes da maioria dos jogos narrativos por aí é a resolução de uma jogada, um gradiente de resultados possíveis no 2d6+modificador: sucesso total (10 ou mais), sucesso parcial (entre 7 e 9) e falha (6 ou menos).
Sucesso Total é autoexplicativo, você têm êxito no que tentou sem repercussões negativas;
Sucesso Parcial significa que você atingiu seu objetivo, entretanto com alguma consequência. Você golpeia o oponente, mas seu movimento te separa dos aliados; ninguém nota sua invasão, mas você deixa cair um item no último corredor onde passou; o espaçoporto aceita seus códigos falsificados, mas após pousar você percebe a nave da sua rival no local. O importante aqui são as guinadas interessantes para a narrativa em vez de apenas afetar negativamente uma personagem;
Falha quer dizer que sua tentativa fracassou miseravelmente e a ação da sua personagem trouxe uma reviravolta extremamente desagradável e perigosa para ela e o grupo. Entretanto, dependendo da cena, pode significar que ela até conseguiu o que almejava mas a um custo altíssimo.
O mais legal de tudo é que falhar não encerra o andamento da história nem decreta o fim do “tempo de tela” da personagem que rolou mal. Esse conceito é conhecido como Fail Forward, que eu costumo chamar de Falha Motriz (termo escohido quando traduzi o Retropunk RPG pela editora Retropunk). Outro ponto a se destacar é que, na maioria dos PbtA, uma falha te concede um ponto de XP! Ou seja, quanto mais você falha, mais você aprende e evolui. Além, é claro, de trazer desdobramentos incríveis e ameaças repentinas para seu grupo e você resolverem.
Há quem chame isso de marmelada, mas considero essa uma mecânica leve e elegante que move a narrativa sem tomar o protagonismo nem punir quem falhou. Importante lembrar que uma falha também abre espaço para a pessoa narradora fazer um Movimento de MC, mas isso fica pro futuro. E aí, captou a essência dos PbtA? Então é hora de rolar os dados e engatilhar Movimentos! Até breve.