Narrando Terror com Mais Impacto

Hayako
10 min readJan 25, 2021

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Muitas pessoas costumam dizer que RPGs de terror e horror são bem difíceis de narrar. Alegam que não sabem como fazer descrições evocativas, criar a tão almejada imersão e deixar as personagens-jogáveis (PJs) tensas sem forçar a barra. Bem, realmente não é tão fácil, mas eu reuni algumas dicas para vocês vencerem o medo de se tornarem grandes Mestres do Terror e Horror!

Antes de mais nada um pouco de contexto e semântica: terror é o implícito, o que está oculto atrás da porta ou nas sombras, indistinguível e indeterminado, o que provoca tensão e a sensação de desconforto; horror é o explícito, o horrendo e bizarro que não se esconde, tripas e sangue pra todo o lado, não deixa dúvidas do que é, o que causa repulsa e ojeriza. Daqui por diante vou usar só o termo terror para resumir, mas as dicas cabem pros dois. E servem também para mesas online e presenciais — quando sairmos da pandemia!

1) MESTRES, GARANTAM QUE SUA MESA DE TERROR SEJA SEGURA!

Façam Sessão Zero! Utilizem Ferramentas de Segurança! Mestres, respeitem os limites de cada pessoa jogando, inclusive os seus! Esse ponto vale para qualquer sistema ou gênero de RPG, e é ainda mais importante numa mesa que vai evocar emoções fortes e tensão constante. Ter uma conversa franca e aberta com o grupo vai alinhar as expectativas de todos, vai fortalecer o intuito de todos se divertirem em conjunto sem ferir ninguém. Uma sessão pode facilmente descambar pro pastelão e para a zuera ou incomodar alguém se não houver acordo de para onde querem levar o jogo. RPGs são atividades em grupo, e como tal demandam uma boa dose de empatia.

2) ANATOMIA DO MEDO

“A emoção mais antiga e mais intensa da humanidade é o medo, e o medo mais antigo e mais intenso é o medo do desconhecido”

— H.P. Lovecraft

O objetivo de um RPG de terror é provocar medo, mas para isso precisamos entender como o medo funciona e como evocá-lo da maneira mais eficaz — mantendo sempre a mesa segura!, lembre-se do item 1.

  • Definir claramente o objeto (o que causa medo) e o motivo (por que causa medo). Segundo a escritora do gênero gótico Ann Radcliffe (1764 — 1823) esses dois elementos são cruciais para causar essa emoção durante o jogo, portanto comece por aí quando preparar sua sessão e pensar no elemento que vai ameaçar o grupo. Aqui vão alguns exemplos: um lobisomem — objeto (criatura transmorfa) e motivo (caça e mata pessoas com selvageria); um vampiro — objeto (criatura imortal maliciosa) e motivo (rapta pessoas à noite e se alimenta do sangue delas); um fantasma (ser incorpóreo e vingativo) e motivo (ataca corpo e a mente sem aviso).
  • Definir qual abordagem do medo. Existem 5 vertentes para pautar o medo no seu jogo:

— O medo do desconhecido (Cthulhu, Alien o Oitavo Passageiro e outras coisas que a Humanidade não conhece/não compreende);

— O medo de algo tangível conhecido (uma criatura ou agressor de carne e osso);

— O medo do intangível conhecido (fobias, traumas, sensações causadas pelos ambiente, seres incorpóreos, coisas ruins por vir);

— O medo de se tornar o mal (emoções incontroláveis, “o monstro interior”);

— E o medo de viver cercado pelo mal (outra dimensão/outra realidade, mundo distópico como no filme Matrix ou no livro 1984, um mundo destruído e tomado de zumbis famintos).

Ok, agora que aprendemos que papel o medo vai cumprir no jogo, vamos ver como provocar medo no grupo.

3) PARA CAUSAR MEDO NAS PERSONAGENS, CAUSE MEDO NOS(AS) JOGADORES(AS)

Dê-lhes prazer; o mesmo prazer que têm quando acordam de um pesadelo.

— Alfred Hitchcock

Parece uma afirmação um tanto polêmica, mas é bastante eficaz. Ok, como fazer isso? Primeiro de tudo: lembre-se do item 1! Mantenha a mesa segura e não cruze os limites estipulados na sessão zero. Bem, para causar medo real e manter a tensão constante é preciso tocar a pessoa jogadora. Não é chocar, não é ameaçar, não é assediar e muito menos fazer contato físico com a pessoa mesmo que haja intimidade com ela. Tocar significa fazer a emoção da personagem no jogo ser percebida e assimilada pela pessoa que a interpreta. Entendido? Ótimo. Agora vem a parte boa, como causar medo nas pessoas jogadoras:

  • Garanta para que cada personagem-jogável (PJ) seja crível, profunda e próximas de seu/sua jogador(a). Voltamos de novo à importância do item 1, em especial da Sessão Zero. Sejam fichas prontas ou personagens criadas do zero, faça muitas perguntas sobre seus históricos, visão de mundo, opiniões e relacionamentos. Estabeleça relações prévias entre as PJs (onde se conheceram? Quando foi a última vez que se viram? Você concorda com os métodos da outra personagem? Você confia nela ou não? etc.). Isso tudo vai fazer o(a) jogador(a) criar um investimento pessoal na própria PJ, e sem essa afinidade a emoção não vai tocar quem está jogadando;
  • Com PJs mais palpáveis e densas (mais identificação com as pessoas jogadoras, como visto acima), mergulhe-as numa ambientação que cause tensão, confusão e incômodo constante. Veremos mais à frente como ambientar melhor seu jogo de terror;
  • E a cereja do bolo para que o medo recaia sobre personagens e, portanto, jogadores(as): faça com que as PJs desconfiem umas das outras. Fomente um clima de desconfiança e isolamento entre aliados(as). Uma das técnicas para isso é fazer cortes rápidos, pular de personagem em personagem perguntando o que estão fazendo, onde estão mexendo, o que estão investigando. Isso fará com que se crie no fundo da mente da pessoa jogadora uma sensação de que “fulano não espera eu acabar minha ação”. Leve o suficiente para o clima incômodo, mas sem “tomar a vez” de ninguém. Outra técnica é, quando uma PJ tomar um curso de ação, perguntar para outra “você vê fulana fazendo_____, você concorda/espera?” ou “você vê sicrana ir em direção a_____, você deixa ela ir primeiro?”. Sim, é uma safadeza, mas funciona. E muito! Não use o tempo todo porque não é para criar intriga na mesa, é para criar desconfiança dentro do jogo.

4) A AMBIENTAÇÃO IDEAL É ESTRANHA E, PORTANTO, ATRAENTE

Não acredite em nada do que você ouve, e apenas metade no que você vê.

— Edgar Allan Poe

Para criar um clima de terror genuíno é preciso mergulhar as PJs numa ambientação estranha, desconcertante, quase uma realidade paralela. Quanto mais profundo afundarem nesse oceano obscuro, mais tensão e medo sentirão. Para uma boa ambientação eu uso 3 técnicas narrativas:

  • Ritmo de Fala/Narração —use frases curtas e fale devagar, beeeeem de-va-gar nos momentos-chave. De vez em quando faça também pausas de alguns segundos e retome a fala. Isso cria um incômodo, uma leve confusão mental e aumenta a tensão. Aumentar e diminuir o volume da voz enquanto acelera e desacelera o ritmo também provoca um impacto interessante;
  • Descrição de Cena/Ambiente — use e abuse dos estímulos sensoriais (respeitando o que foi acordado na sessão zero), mas evite descrições intermináveis da cena. Alcance todos os cinco sentidos das PJs, só não use todos de uma vez. De vez em quando brinque com a percepção do grupo misturando seus sentidos (por exemplo: “um ruído de gelar a espinha”, “um odor pegajoso e quente”, “um brilho rígido”, etc.) porque isso provoca uma dissociação lógica e, de novo, um incômodo. Tire o máximo do “demonstre, não descreva” (show, don’t tell);
  • Emoções x Sensações — evite declarar que uma PJ sentiu medo, raiva ou alegria, pois isso pode roubar a agência do(a) jogador(a). Há uma grande e acalorada discussão sobre assunto, se mestres podem ou não fazer isso, então eu prefiro adotar o meio termo. Declare sim que a personagem sentiu um arrepio e o coração acelerar (de medo), o corpo se retesar e um calor tomar seu rosto (de raiva), o peito se inflar e um calor no rosto (de alegria ou alívio). Faça o mesmo com as sensações de frio, falta de ar, vertigem, etc. É uma forma sutil e menos invasiva de afirmar como uma PJ reagiu numa cena sem passar por cima da pessoa que a interpreta.

Além da sua voz, há outras ferramentas que também ajudam a criar um ótimo clima de suspense e terror. Use músicas de fundo e efeitos sonoros para somar à sua narração. O segredo para uma boa lista é buscar faixas que sejam instrumentais e que sejam quase monotonais (sem muitas variações). Há ótimos sites e outras plataformas para usar músicas e sons ambiente a seu favor. Vou listar alguns:

  • Tabletop Audio — há diversas faixas grátis do gênero terror, trilhas sonoras temáticas predefinidas que pode gerar um link para toda a mesa ouvir simultaneamente, e também a possibilidade de criar seu próprio banco de sons reunindo efeitos sonoros do site;
  • Roll20 — a plataforma oferece algumas músicas e efeitos sonoros grátis, além da possibilidade de subir seus próprios arquivos de áudio;
  • Owlbear Rodeo — é uma espécie de Roll20 gratuito e mais simplificado, o interessante é que oferece uma opção para mestres compartilharem áudio de seus computadores para o grupo ouvir;

Nem todas as pessoas curtem usar música na mesa, mas dê (mais) uma chance a elas. Duvido que o grupo não sinta calafrios quando você tocar essa faixa aqui:

Ou essa aqui:

Ou essa outra aqui:

Eita, senti até um calafrio…

5) AMEACE AS PJs TORNANDO AS PNJs DESCARTÁVEIS

A perda de um inimigo não compensa a de um amigo.

Abraham Lincoln

Eu gosto particularmente dessa dica: colocar em perigo e, porque não, ceifar as vidas de personagens não-jogáveis (PNJs) mostra ao grupo que o perigo é real e imediato. Isso também lança uma sensação de tempo se esgotando nas PJs, urge que elas tomem atitudes muitas vezes desesperadas; e aí é que está a diversão.

Mas lembre-se, o grupo só vai se importar com as PNJs se elas forem memoráveis e interessantes. Nada de criar um porteiro chamado Zé sem qualquer destaque ou traço interessante que mereça a empatia das PJs, pois dois minutos depois ninguém vai se lembrar ou se importar com o Zé. Faça com que tenham voz e personalidade própria.

As PNJs devem ser úteis e durar pouco no jogo. Ameace-as, rapte-as, cause ferimentos nelas sem matá-las de imediato, faça-as serem fardos para as PJs. Essa lição maravilhosa eu aprendi com Monsterhearts, um dos Princípios do jogo augere: “Trate PNJs como carros roubados”. Como vocês sabem, muitos carros roubados acabam sendo queimados e largados onde ninguém os encontra mais porque sua utilidade acabou…

6) USE OS PRINCÍPIOS DOS JOGOS PBTA DE TERROR

Eu quero fazer minhas próprias descobertas… Penetrar o mal que me atrai.

Anaïs Nin

Os jogos Powered by the Apocalypse (PbtA) são conhecidos por conterem uma lista-guia de Princípios e Objetivos para a pessoa narradora conduzir o jogo com mais impacto. Nada mais são do que boas práticas, muitas são bem óbvias, mas ajudam bastante a manter o foco de mestres no que é importante e criar uma imersão mais profunda e consistente com a proposta.

Já sugerimos um Princípio de Monsterhearts no tópico anterior, então aqui vão mais alguns como referência ou conselho para você “cair matando” no seu jogo de terror:

  • Faça monstros parecerem humanos (Monsterhearts)
  • Faça humanos parecerem monstruosos (Monsterhearts)
  • Coloque o horror em situações cotidianas (Monstro da Semana)
  • Nada está seguro. Mate espectadores e lacaios inimigos, destrua prédios, deixe alguns monstros serem aniquilados (Monstro da Semana)
  • Tudo é uma ameaça (Monstro da Semana)
  • Algumas vezes dê ao grupo exatamente o que merecem ao invés do que querem (Monstro da Semana)
  • Introduza o estranho, o bizarro e o sobrenatural em cada oportunidade (Tremulus)
  • Suje as mãos de todos os envolvidos (Sombras Urbanas)
  • Dê um preço a tudo, mesmo à amizade (Sombras Urbanas)

Ao longo dos anos fui testando várias técnicas, exercícios de narração, lendo materiais de apoio e blogs, e hoje eu uso esses 6 elementos para narrar minhas mesas de terror ou horror. Aposto que alguns desses conceitos — se não todos — vão te ajudar bastante a narrar esse gênero com mais confiança e controle de situação. Como brinde, vou deixar alguns links de vídeos com dicas para narrar terror que me inspiraram e ajudaram bastante até hoje.

Dicas para Mestrar RPG de Terror e Horror (canal do Tio Nitro)

Horror no RPG (canal Pausa para um Café)

Botando Terror no RPG (canal Ordem do Dado)

Dicas de como Narrar uma Aventura de Horror (canal RPG Notícias)

Como Mestrar Jogos de RPG de Horror (canal do AzeCos, série Mestres do Dungeon)

(mais um brinde no pé da página)

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BUUUUUUU!

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Hayako
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Written by Hayako

Tradução de pérolas de RPG e pitacos mirabolantes como você nunca leu!

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